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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Indomável Maysa

O olhar profundo, como se procurasse invadir a alma de quem encara. A voz rouca, confessional e única. O tom atrevido, como emoldurava os posicionamentos, causava furor. Tais marcas e características ainda são insuficientes para delinear o espírito indômito chamado Maysa Figueira Monjardim (1936-1977).Maysa é Maysa. Chegaria, hoje, aos 80 anos. Mãe, cantora, compositora, atriz, celebridade de um período da história brasileira onde a liberdade feminina não ultrapassava os limites de ser apenas uma "Ofélia". 

Incomodava a sociedade por conta da postura incisiva. Amou, brigou e chorou com a mesma intensidade e brilho. Cantava a decadência e as desventuras daqueles que viviam a noite.
Ainda menina, preferia Noel Rosa a Chopin, a batida do samba aos compassos do ballet. Tal vocação artística explodia as barreiras da desconfiança. A família conservadora se escandalizou quando, com apenas 13 anos, Maysa deixava de lado a música clássica pelos sambas de Ary Barroso.
Desejando criar música popular, compôs o primeiro samba-canção "Adeus", causando decepções sempre que se recusava a assistir uma ópera para ficar ouvindo batucada na voz de algum de seus sambistas prediletos. A leitura obedecia as linhas de Manuel Bandeira e Vinicius de Morais.
Acompanhada do violão, iniciou a carreira em festas da alta sociedade, onde interpretava páginas da música popular brasileira, baseadas, na maioria, em composições dela mesma.
Os mais severos desgostavam da atitude da moça. Aconselhavam o interesse pela música erudita (achavam o gênero mais adequado à posição social da família). Mas o amor pela arte superava qualquer argumento. Já não importunavam as aparências, os comentários. Buscava satisfazer o "eu". Queria ser cantora, acima de tudo.
A primeira paixão explode por um amigo da família: o filho do conde André Matarazzo. O romance foi alimentado durante três anos até a jovem se transformar na mais bonita noiva da sociedade paulistana. O casamento pomposo, digno de um conto de fadas, significava uma nova batalha na trajetória de Maysa.
Deixou-se contagiar pela vontade firme de ser uma profissional da música. Iniciou uma série de recitais com fins filantrópicos e mostrou que podia ir além. Convidada pelo então produtor Roberto Côrte-Real (1919-1988) gravou, após o nascimento do único filho Jayme, o álbum "Convite para ouvir Maysa" (todo preenchido com composições próprias).
Toda a renda do disco foi destinada ao Hospital do Câncer de Dona Carmen Annes Dias Prudente. O sucesso era óbvio nas rádios paulistas e cariocas. Aos poucos, a carreira de Maysa foi se consolidando. Porém, a sua escolha aborrecia cada vez mais o marido. O casamento iria à ruína logo depois.
Desquitada em pleno 1957, mudou-se para o Rio de Janeiro com o filho. Dedicou-se ao estúdio e lançou "Maysa". Ao contrário do primeiro álbum, no qual foi proibida por André de aparecer na capa, neste apresentava-se uma foto da cantora.
A resposta ao ex-companheiro é clara nos versos de "Ouça": "Vai lembrar que um dia existiu/ Um alguém que só carinho pediu/E você fez questão de não dar/Fez questão de negar". Um ano depois chegava às lojas "Convite para Ouvir Maysa nº 2", disco considerado, pela crítica, como irretocável.
Tornou-se campeão de vendas e lançou a canção imortal de Maysa: "Meu mundo caiu" como o maior sucesso do ano. Até o fim da década de 1950 a artista acumularia prêmios e atingiria o posto de cantora mais bem paga do Brasil.
Com "Barquinho", de 1961, abraçou a Bossa Nova e expandia de vez as referências sonoras. Ao lado de Roberto Menescal, Luiz Eça, Luiz Carlos Vinhas, Bebeto Castilho, Hélcio Milito e Ronaldo Bôscoli divulgou o novo ritmo pelo exterior.
Argentina, Uruguai, Japão, México, Estados Unidos foram alguns dos países percorridos. Neste último realizou temporada e gravou o aclamado "Maysa Sings Songs Before Dawn" pela Columbia Records norte-americana. O álbum traz clássicos como "A noite do meu bem", "I'm a fool to want you" e a cortante versão de "Ne me quitte pas".
Já nos anos 1970, Maysa lança "Ando só numa multidão de amores", porém sem o mesmo sucesso de público dos trabalhos anteriores. A carreira de atriz despontou em 1971, quando estreou na novela "O Cafona", da Rede Globo. No mesmo ano, integrou o elenco de "Bel-Ami", pela TV Tupi e montou o espetáculo teatral "Woyzeck", de George Büchner.
Após algumas temporadas em boates do Rio de Janeiro e São Paulo, desde o fim de 1972, Maysa se afasta do meio artístico e decide morar em uma casa de praia, localizada no município de Maricá, litoral fluminense. Ali, ficaria até o fim da vida. Durante este período, quase não gravou discos nem fez shows, e fazia poucas aparições na mídia. Realizou algumas das últimas apresentações de sua carreira na boate Igrejinha, localizada em São Paulo, em 1975.
Maysa estava chegando aos 40 anos e ocupava posição única no cenário artístico nacional. Deusa da música de "fossa", uma espécie de "Edith Piaf dos Trópicos", a artista representava bem mais que um ícone da boemia.
Testemunha da vida noturna, cantava nos versos próprios a melancolia e dor dos desajustados. Emoldurava de Dolores Duran a Vinicius de Moraes; de Jacques Brel a Tom Jobim. Tinha consciência do êxito e da coragem de estar à frente de seu tempo. Caía e se levantava com a mesma intensidade e mesma coragem.
Em 22 de janeiro de 1977, a artista guiava a Brasília azul pela ponte Rio-Niterói em direção a Maricá, quando, ao tentar desviar de outro veículo, bateu contra um cabo de proteção. Em poucos minutos, o turbulento, transgressor, apaixonado e indomável coração parou de bater.
Encerrava a história daquela que desafiou toda uma lógica opressora contra as mulheres. O legado de Maysa certamente está nos registros fonográficos. Porém, uma de suas maiores contribuições aos dias atuais é certamente a coragem e a postura docemente indomável.

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