Seja bem vindo...

Páginas

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Territórios da cultura

Engana-se quem pensa que, nas margens da cidade, dominam as ausências. É verdade que, ali, até mesmo a desestrutura do chão, de asfalto ou de pedra, estampa certo sentimento de falta - de planejamento, de políticas públicas e culturais, do Estado. Já faz tempo que as ruas vêm sendo transformadas em becos pelo crescimento desordenado ou que o acesso ao mais básico direito precede de luta.

Na periferia, comunidades inteiras se veem apartadas da cidade pelo estigma da violência, que existe, mas jamais poderia ser capaz de definir um território. Essa compreensão - e a necessidade de afirmar-se para além dos estigmas - é combustível para uma produção cultural que, aos poucos, começa a se revelar também para o restante da cidade.
São grupos que se apropriam da música, da literatura, do teatro, da dança e de uma infinitude de linguagens artísticas para afirmar-se socialmente, conectar-se ao bairro, reforçar identidade, encontrar novas oportunidades para sobreviver. Eles lutam, na maioria das vezes sem qualquer apoio, para criar - ainda que de forma desarticulada - territórios da cultura.
E assim, onde a cidade normalmente só consegue enxergar medo e ausência, se desdobram iniciativas capazes de revelar uma nova Fortaleza - de guetos que fervilham pela produção cultural, de artistas tão conscientes do próprio trabalho a ponto de recusarem o rótulo de "meninos da periferia". Eles sabem: a cultura das comunidades é uma forma de resistir à invisibilidade, mas é também espaço para revelar a própria diversidade.
Plural
A periferia do rap, do hip hop e do grafite é a mesma do teatro, da cultura popular, do rock, da poesia. E é neste universo plural da cultura produzida nas margens de Fortaleza que o Caderno 3 mergulha nesta série, publicada de hoje (25) a quinta-feira (28).
Nesta edição, um convite para que o leitor conheça o Grande Mucuripe por meio do rap e da percussão. Lá, a música constrói pontes para o trânsito dos moradores pela comunidade e para aproximar, dali, o restante da cidade. Amanhã, o teatro levado às ruas do Pirambu busca ocupar o bairro e fortalecer-lhe a identidade.
Na quarta (27), um espaço para olhar o Bom Jardim pelo viés do rock underground. A série se encerra na quinta (28), com a atual tentativa do Conjunto Ceará para retomar a tradição da articulação cultural - uma busca de coletivos locais para integrar diferentes linguagens em programação unificada no Polo de Lazer.
Na trajetória dos grupos dessas quatro regiões da cidade, existe, em comum, a forte tentativa de consolidar territórios de criatividade, lugares onde as pessoas não apenas consomem cultura, mas se apropriam dela, seja para relacionar-se com a comunidade, para tentar transformar a realidade local ou como fonte de renda e, consequentemente, de sobrevivência.
"Ninguém acontece só, tem que ser em galera", defende o músico Cícero Alexandre, do Bom Jardim. Daí a necessidade de criar e de fortalecer espaços de encontro, de troca e de produção cultural independentes. "Nós somos porta-voz dessas comunidades que sofrem muito preconceito social e racial, que são questões que não podem ser deixadas de lembrar", explica o percursionista Júnior Brasil, que mantém o projeto social "Quebra-mola", no Morro Santa Terezinha.
Essa assumida responsabilidade dos grupos com a promoção da cultura nas periferias levanta ainda um debate sobre questões que precisam ser levadas em consideração na elaboração da política cultural da cidade. Para eles, é preciso estimular a produção local, multiplicar os espaços de fruição, ampliar a circulação dos grupos dentro de Fortaleza.
Público
É necessário, acima de tudo, reconhecer os moradores das comunidades da periferia efetivamente como público, aposta Liana Cavalcante, integrante do grupo de teatro Teruá, no Pirambu. A batalha diária dos grupos independentes, ela define, é fortalecer territórios culturais que até já existem, mas que ainda atuam sem apoio e de forma fragmentada.
"É sempre uma dificuldade convencer o Poder Público da importância de investir nesses territórios e tratar as comunidades como público, mesmo porque dificilmente as pessoas daqui vão para o Dragão do Mar consumir cultura", explica Liana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário